Um dos maiores escândalos de abuso sexual da história recente da França chegou ao fim nesta quarta-feira (28), quando o Tribunal de Vannes, na região da Bretanha, condenou o ex-médico cirurgião Joël Le Scouarnec, de 74 anos, à pena máxima de 20 anos de prisão. Ele foi considerado culpado por estuprar e abusar sexualmente de 299 pacientes, sendo 256 deles menores de 15 anos, ao longo de mais de duas décadas de atuação em hospitais franceses.
O julgamento, que durou três meses, revelou não só a extensão dos crimes de Le Scouarnec, mas também expôs falhas sistêmicas que permitiram que os abusos se estendessem por tanto tempo sem que fossem interrompidos. “Foi levado em consideração que os atos cometidos são de particular gravidade devido ao número de vítimas, à sua pouca idade e à natureza compulsiva dos crimes“. declarou a juíza Aude Buresi ao ler a sentença, de acordo com o jornal francês Le Monde.
Le Scouarnec já estava peso desde 2020, quando foi condenado a 15 anos de prisão por estuprar e abusar sexualmente de quatro crianças, incluindo duas sobrinhas, uma jovem paciente e uma vizinha de apenas 6 anos, crime que acabou sendo a porta de entrada para a revelação de centenas de outros casos.
Confissão
Diante do tribunal, ele não negou os crimes. Desde o início do julgamento, confessou ter cometido 111 estupros e 189 agressões sexuais entre 1989 e 2014, muitos deles contra pacientes sob efeito de anestesia ou ainda acordando de cirurgias. “Cometi atos abomináveis“, admitiu logo no primeiro dia de audiência. “Não estou pedindo clemência ao tribunal. Simplesmente me conceda o direto de me tornar uma pessoa melhor“, acrescentou.
O advogado do ex-médico, Maxime Tessier, chegou a pedir que o tribunal considerasse a “natureza excepcional” da confissão do cirurgião, que admitiu todas as acusações em março. Segundo Tessier, Le Scouarnec “nunca teve a intenção” de recorrer da decisão.
Apesar da pena máxima, a legislação francesa permite que ele peça liberdade condicional após cumprir dois terços da sentença. O tribunal também determinou que Le Scouarnec fique sob monitoramento social e judicial por 15 anos após o cumprimento da pena, incluindo a proibição permanente de exercer qualquer atividade ligada à medicina ou que envolva menores de idade.
Por outro lado, os juízes rejeitaram um pedido da promotoria para que o cirurgião fosse mantido, após a prisão, em um centro especializado de tratamento e vigilância, considerando seu “desejo de reparar” os atos cometidos.
Segundo o Le Monde, a defesa alegou arrependimento, mas nem as vítimas nem seus representantes acreditaram na sinceridade das palavras. “Quem você está tentando convencer de que mudou?“, questionou a advogada Delphine Caro. Para outro advogado das vítimas, Giovanni Bertho-Briand, “admitir tudo é não admitir nada”. Thomas Delaby, também defensor de parte dos sobreviventes, falou sobre o discurso de Le Scouarnec. “Você é o pior pedófilo em massa que já existiu. As vítimas nunca o perdoarão. Nunca“, disse.
Vítimas e novas investigações
No lado de fora do tribunal, vítimas organizaram um protesto segurando cartazes com frases como “Nunca mais” e “Eu acuso você”. Os horrores cometidos pelo ex-cirurgião vieram à tona após sua prisão, em 2017. Durante as investigações, foram encontrados cadernos detalhados em que ele anotava nomes, idades, endereços e descrevia os abusos que cometeu. Nas anotações, Le Scouarnec se defenia como o “grande pervertido” e “pedófilo”.
Ele também afirmou, em sua declaração final, que se sentia “responsável” pela morte de duas de suas vítimas: Mathis Vinet, que morreu em 2021 por overdose, num suicídio segundo a família, e outro homem que foi encontrado morto em 2020. As investigações também revelaram que Le Scouarnec conseguiu seguir atuando por anos, mesmo após ser condenado, em 2005, por posse de pornografia infantil. Na ocasião, foi sentenciado a quatro meses de prisão, com pena suspensa. Ainda assim, manteve seu registro médico e nunca foi obrigado a fazer tratamento ou se afastar de atividades médicas.
O Ministério Público já abriu duas novas investigações ligadas ao caso, uma delas envolvendo possíveis novas vítimas que ainda não foram identificadas. Segundo o Le Monde, o promotor deixou claro durante seu discurso final que Le Scouarnec pode voltar a ser julgado no futuro.
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